Se você anda precisando exercitar sua humildade, recomendo tentar aprender grego.
Inventei essa moda há exatamente 41 dias, de acordo com o meu strike do Duolingo, e vou te contar: minha eu de 14 anos, que levantava o bracinho pra responder perguntas em aula com a ansiedade e determinação de uma Hermione Granger de baixo orçamento, anda muito frustrada. Não só porque sou uma CDF em recuperação, que está lutando pra respeitar seu próprio tempo e processo de aprendizado, mas porque grego é uma língua difícil1. Lembro que contei para uma comissária de bordo, a caminho de Atenas, que estava tentando aprender a língua dela; os olhos da moça se arregalaram e ela deu uma risada muito sincera e cristalina, acompanhada de um “boa sorte!”.
Se estivéssemos em um anime, seria nessa hora que meus olhos apareceriam em zoom na tela, brilhando como aço, e eu apontaria para o céu anunciando o início de um shounen dos idiomas, imediatamente correndo com os bracinhos pra trás por entre ruínas de templos clássicos, montanhas ensolaradas e estátuas que lembram vagamente o Aristóteles.
Na vida real, dei um sorrisinho e caprichei na palavra que mais usaria na viagem inteira: ευχαριστώ. (Obrigada) Ela elogiou minha pronúncia, eu ganhei o dia e, horas depois, cheguei na Grécia determinada a absorver tudo.
Minha cabeça girava mais que a da Regan MacNeil de O Exorcista. Queria ler cada placa, entender cada letra, falar tudo em voz alta. Tirava fotos bestas de coisas que treinei no Duolingo, tipo μινιμάρκετ (mercadinho) ou νερό (água). Queria ter aquele tipo de memória que lembra de tudo perfeitamente. Queria conhecer todos os deuses, todas as estátuas, todos os templos, todas as ilhas, tudo, tudo, tudo! Beber aquele país de canudinho, digeri-lo todo e transformar em narrativa, arte, causos, sei lá. No fundo, eu queria ser a Grécia, parte daquele chão, daquelas colunas, daquela infinitude milenar.
Gosto muito do conceito de genius loci, que conheci lendo esse livro aqui. Basicamente, os genius loci eram almas primordiais que faziam o papel de guardiãs de certos lugares e são responsáveis pela maneira que nos sentimos quando visitamos esses espaços. O genius loci da Biblioteca de Alexandria, por exemplo, seria um sábio, que sopra calma e concentração nos nossos ouvidos quando entramos nesse templo de sabedoria. O genius loci do Coliseu certamente seria um espírito de batalha, tenso, pronto pra encarar a morte nos olhos, pois dele emana a tensão que o Coliseu evoca. São espíritos aprisionados pela beleza de serem um lugar, protetores do inexplicável, dos sentidos, do palpável invisível.
De certa forma, acho que essa é a essência de um dos maiores problemas que encaro como escritora de ficção: querer me tornar a história. Mergulhar tanto no seu universo — e nas referências que vão torná-lo palpável e sensível, como minhas tramas favoritas sempre souberam fazer — a ponto de ser mais do que guardiã dessa narrativa, mas ser a própria narrativa. Sinto que preciso beber o mundo inteiro antes de construí-lo — e esse é um trabalho infinito, impossível.
Talvez eu acredite, no fundo, que beber o mundo me prepararia para a vulnerabilidade de ser artista. Ter toda resposta na ponta da língua, sem hesitar. Ter defesas em posição para cada palavra questionada. Mas a vida e a arte não são assim.
(Ainda bem?)
Semana passada fiz uma coisa muito atípica e muito boa: fui num sarau com a minha querida amiga Rosinha, escritora de mão cheia mas tímida, como eu, em botar seu bloco na rua. Fomos ver a primeira edição do CONTATO RUBRO, um encontro de Letícia Bassit, Clara Kok e Aline Bei. Foi tão lindo e hipnótico que só tenho uma foto delas:
No fim da noite, fiz uma pergunta para Aline e Letícia: como lidar com o medo da arte? Como arranjar coragem pra sair por aí, se colocar à prova, compartilhando os pedacinhos do mundo que digeri, sabendo que não é ele todo, sabendo que pode ser muito falho?
As duas responderam que sem vulnerabilidade, não se faz arte. Foi a Aline quem relembrou que o medo não é, necessariamente, paralisante: ele nos move adiante. O medo é um humor igualmente correto para criar, não o contrário. O que nos deslumbra não é o perfeito; é o vulnerável.
Então, né, fazer o quê? Errar no Duolingo tentando acertar as conjugações malditas. Escrever aquele romance esquecido no Google Docs. Mesmo que seja errando, deixar o mundo mais bagunçado, de um bom jeito, do que quando chegamos. E beber o mundo aos pouquinhos, apreciando a jornada.
Tô cheia de recomendações pra fazer pra vocês essa semana:
🏚 Esse artigo delicioso sobre ir em uma residência literária e NÃO escrever (um dos meus maiores medos) — em inglês;
🚀 Gente, vocês já seguem a Carmen Maria Machado aqui no Substack? Achei que o fandom tinha matado meu amor por Doctor Who pra sempre, mas essa edição sobre o destino da Donna Noble me arrancou lágrimas e arrepio, desgraça de escritora boa — em inglês;
✏ Fabi magnânima escreveu sobre viver de escrita no Brasil com uma perspectiva bonita e sincera — em português;
🤯 Comecei a ler, assistir e jogar muita coisa esses dias, mas preciso terminar ou jogar mais pra ter uma opinião completinha. Mas tenho pensado em fazer edições apenas de listas de coisas legais, referências e leituras, se vocês quiserem! Contem aí nos comentários ;)
Ευχαριστώ πολύ (muito obrigada!) por terem me lido até aqui e até a próxima!
Também tem o fator gamificação do Duolingo, que me faz ficar p da vida sempre que não tiro 100% no aproveitamento diário. Mas eu amo muito essa coruja safada, fazer o quê.
como q seu texto tão curtinho me deixa com lágrimas nos zói as 8 da manhã de uma munique fria e chuvosa??????
Amiga, que honra ser citada por você e eu também ainda estou DOIDONA do gás dessa noite!