Está rolando uma discussão no Twitter (e quando não tá?) sobre o absurdo que é Neil Gaiman — O Neil Gaiman — estar “praticamente implorando” que todo mundo assista a Sandman, na Netflix, para que a segunda temporada seja confirmada. Ele, de fato, tem dado várias dicas de como convencer o algoritmo de que Sandman é uma das melhores coisas inventadas nos último trinta anos, até porque é mesmo, mas tem algo no tom dessa conversa que tem me deixado um pouco incomodada.
Claro que essa é uma excelente oportunidade de discutir o mercado de streamings, alcance, audiência e o quanto os algoritmos têm pautado o que vale e o que não vale no mercado de entretenimento. Essa é uma conversa urgente, importantíssima e cheia de camadas, que provavelmente se beneficia pouco do fervor que o Twitter geralmente exige das discussões, mas que está sendo abordada com profundidade e interesse por muitos artistas.
Mas o que me incomoda é a ideia de que Gaiman está se colocando em um lugar humilhante ao pedir que a comunidade que o ama, seus milhões de seguidores e leitores, a assistir a série. Gente, peraí. Em que momento passamos a deixar a potência das comunidades de lado quando falamos de Sandman? Por que seria humilhante lembrar que esse é o sonho de tanta gente e, bom, especialmente do Gaiman?
A nova comunidade que tem se formado ao redor de Sandman está viva, vibrante e vai além de quem leu e se apaixonou pelos quadrinhos. Pessoas que eu nunca imaginei que conversariam sobre Morpheus comigo hoje têm fortes opiniões sobre ele (todas corretas). Boa parte disso é mérito do autor e da sua paixão e convicção com o material que tem nas mãos, mas também é uma contrapartida de ter sua obra adaptada por uma gigante do entretenimento.
Ao meu ver, Gaiman não está se humilhando — e nem acho que artistas precisam ser low profile em relação ao próprio ofício. Mais do que isso, Gaiman, muito esperto, está compartilhando uma pitadinha do que é a indústria do entretenimento audiovisual a partir da sua ótica bastante experiente — e essa indústria sempre foi implacável com números, fosse a TV aberta, as fechadas e o próprio streaming.
Isso também aconteceu com os quadrinhos. Sem Karen Berger, que tinha voz dentro da Vertigo e queria apostar em autores como Alan Moore e “outros britânicos”, Sandman não seria o sucesso que foi — e como foi um sucesso estrondoso. As histórias de Morpheus não tiveram 75 edições à toa. Sandman foi uma das primeiras graphic novels a entrar na lista de mais vendidos do New York Times, e isso se deve muito à comunidade em seu entorno; criou mercado entre um público que não se identificava com os quadrinhos, mas que se apaixonou pela obra.
Não deveria dar pena ver um artista falar sobre sua arte com paixão, com frequência e, mais do que isso, explicar à sua comunidade como as grandes indústrias funcionam, quando influenciam diretamente em seu trabalho e na recepção desse trabalho. Eu sinceramente gosto que ele me inclua nos seus planos de dominação mundial1; Sandman está passando em looping por aqui.
Não é nossa obrigação saber os bastidores desse processo. Não é obrigação ele explicar, nem se interessar por isso. Mas Gaiman conhece a fundo quem o apoia e entende a relação de troca que a arte tem; pra mim, faz perfeito sentido que ele queira nos ensinar a hackear as engrenagens que existem por trás daquilo que amamos e consumimos. Isso só me faz gostar mais dele.
Aliás, hackear o que é ditado como cultura é o coração de A Arte de Pedir, da Amanda Palmer, que por sinal é casada com o Gaiman. Ele provavelmente aprendeu uma ou duas coisinhas com ela.
O fato de Gaiman ser rico, famoso e ter uma comunidade potente ao redor dele, obviamente, torna alguns processos muito mais fáceis. Mas citando meu brilhante amigo JP (com quem eu conversei um tantin antes de enviar essa edição, porque já falamos sobre o tema antes), Gaiman, no fundo, tem o mesmo trabalho de um artista vendendo sua arte na ComicCon. Ele quer se mostrar relevante e a comunidade no entorno é quem torna isso possível.
Felizmente, ele é muito ativo nessa comunidade. Não há descrédito algum nisso, nem torre de ametista o esperando. O homem tem um Tumblr até hoje, peloamordedeus. Ouvir e respeitar a própria comunidade provavelmente é um dos fatores que o faz tão amado.
Amanda nutriu suas comunidades da mesma forma, mas foi por um caminho diferente; ela é seu próprio cenário. No campo que construiu, a partir de muita troca com o público, muitos pedidos e conversas de coração aberto, existe sucesso e reconhecimento, ainda que não nos mesmos moldes dos streamings gigantes ou das produtoras implacáveis com as quais ela trabalhou. Isso não faz dela uma artista menor, menos criativa ou influente, mas sim, envolve decisões importantes sobre audiência, alcance, mercado.
Gosto de acreditar que a arte invade todo espaço disponível. Cria-se o espaço, e ele é criado a partir da voz, da persistência e de enxergar a arte como ofício, ao mesmo tempo em que se equilibra visibilidade e honestidade. E sim, há regras de mercado extremamente competitivas para quem quer participar do jogo dos streamings e das grandes empresas. Quanto mais aprendermos sobre esse jogo, menos eles nos controlam, creio. Sandman não teria sido uma adaptação tão genuína se Gaiman não soubesse jogar o jogo. E se eu quero mais Morpheus na tela, bom, eu quero é mais estar no time dele.
(Mas não, isso não invalida todas as discussões riquíssimas e desabafos importantes sobre arte que estão surgindo nos últimos dias, como falei lá em cima. Como diz a Ursula K. Le Guin, thank you, brave applauders, por jogarem esse assunto na roda. Falamos de lugares muito diferentes do Gaiman, mas no fundo, todos nós queremos ser vistos).
🦄 Não gostou na newsletter? Quer falar umas verdades na minha cara? Show de bola! Esse sábado vou estar na Livraria da Vila da Fradique Coutinho, para conversar com Anna Martino, Carol Chiovatto e Thiago Lee sobre como é escrever fantasia hoje!!!! Esse é o último encontro da Jornada de Literatura Fantástica da Editora Suma. Começa às 11h e a entrada é livre. Vai ser um chuchu (mas tô brincando, não briga comigo lá não — bora se abraçar) 💗
💜 Sim, terminei as três temporadas de Eu Nunca em menos de uma semana. Zero arrependimentos, mil vantagens. Gostei muito de algumas personagens e posso ter pegado toda a coleção de textos da Mindy Kaling, a roteirista de Eu Nunca, no Kindle Unlimited (em inglês). Também achei bem rica a abordagem da autora em relação a luto, especialmente por não poupar os personagens das consequências emocionais da perda de alguém tão próximo. É série teen? Sim. É excelente? Também.
✍ Na onda de ler sobre roteiristas mulheres, comecei ontem Só as Partes Engraçadas, as memórias da Nell Scovell, escritora grandona em Hollywood. Ela conta como é ter uma carreira no show business 1) sendo mulher 2) sabendo que a “vida útil” dentro desse mercado é de 11 anos, de acordo com os próprios roteiristas. Ainda estou bem no comecinho, mas gostando — e o livro está disponível no Kindle Unlimited. Tá cedo pra recomendar, mas acho que recomendo.
Obrigada por terem me lido até aqui! Vamos conversar, rir, discordar se quiserem. De preferência, em um lugar público e bem movimentado, com várias rotas de fuga. Vai ser ótimo!
Isso sem falar na possibilidade de que a segunda temporada já esteja confirmada e só estejam esperando o melhor momento pra anunciar. A gente sabe que isso é bem possível, certo?
Como sempre, ótima newsletter, com mais uma ⭐️ por citar o sempre genial João.
Eu era muito, mas muito fã de Amanda até ela se tornar... complicada. Bem, tem uma edição toda do suplemento de Carreiras da FSP que eu pautei baseado no Patreon dela e do site brasileiro Overloadr. Sinto mto que hoje, pra mim, ela tenha se tornado um símbolo de uma militância branca e polêmica, muito autocentrada e egocêntrica. PORÉM, FALANDO DE GAIMAN, vc está correta e perfeita e maravilhosa, as always
Miga! acho essa discussão interessantíssima (não só por ser sobre Sandman e Gaiman, cof cof), mas também por você trazer um ponto de vista bem diferente do que tem rolado. Não tinha visto ninguém ainda falando e reforçando que tudo bem até mesmo o grande Neil Gaiman vender seu peixe, hackear o sistema, etc (e tudo bem mesmo, tudo bem pra caralho). MAS lá vou eu discordar um pouquinho, posso? Acho que o que pega, pelo menos pra mim (mas imagino que pra algumas pessoas também), não é a questão da humilhação jamais, mas o ponto que não dá pra ignorar é que a indústria do streaming tá mudando toda hora as regras do entretenimento em massa e especialmente as métricas do que é sucesso, do que é fenômeno, e isso impacta (negativamente) na forma como a gente consome. Pra mim, é impensável e sim, triste, que essa série de Sandman não esteja com o futuro garantido (ou a gente tenha essa impressão de que não está) porque não importa se criativamente ela é incrível, se as pessoas gostaram e consumiram de um jeito muito próprio, porque a Netflix só se importa com uma % tal de horas assistidas e especificamente, em modo maratona e cancela até mesmo séries que dão certo, que são amadas, que fazem barulho, por motivos insondáveis. Pode ser que nada do que a gente faça dê certo ou que nem precisasse dessa mobilização toda. É obscuro nesse nível.
A gente sabe bem que é uma indústria cruel, mas as últimas notícias têm mostrado como as regras estão ficando cada vez mais cruéis e injustas. Pra mim, tudo isso estraga muito a experiência final do público, ainda mais falando de uma série como essa, que é reflexiva, que é lenta, que é imersiva. Eu não quero ter que maratonar loucamente Sandman porque se não a Netflix vai cancelar mesmo que a série esteja dando super certo, ou porque se não o meu view não vai contar. Acho tudo isso absurdo e pra mim, impede o gande objetivo da coisa: usufruir, no seu tempo, do seu jeito, daquela obra de arte. Não é bom pra ninguém que o mercado esteja tão competitivo e duro nesse nível e entendo demais seu ponto da comunidade se engajar pra hackear esse sistema, mas talvez eu seja muito idealista de querer que a gente não precise disso. Pelo menos, não dessa maneira. Deve ser muito duro construir um universo inteiro nesse terreno tão instável, que pode colapsar a qualquer momento. Te adoro, desculpa o textão, mas o assunto me toca de muitas maneiras. Amo sua news (e tudo que vc faz) <3